Do facão ao giz, boia-fria vira professor




A doçura da cana-de-açúcar contrastada ao gosto amargo do suor que escorria do rosto queimado pelo sol escaldante. Uma mão calejada e cheia de cicatrizes empunhava um facão. Depois de anos de trabalho intenso nos canaviais, daria lugar ao giz. Em traços firmes, hoje mostra na lousa que para a realização de um sonho basta que alguém acredite.

Filho de trabalhadores rurais e o quinto de seis irmãos, o professor Osmar Previtale Silva, 50 anos, nasceu em 28 de fevereiro de 1965, em uma fazenda entre as cidades de Araçatuba e Aracanguá. Ele é o segundo personagem da série “A vitória pela educação”, que a Folha da Região está publicando aos domingos, contando histórias de pessoas comuns que conseguiram mudar de vida após os estudos.

Desde muito cedo ajudando os pais e os irmãos com a lida na fazenda, Silva aprendeu, ainda pequeno, que se quisesse vencer na vida precisaria lutar e transpor obstáculos que surgiriam.

“Era uma vida de privações. Morávamos de favor e meu pai ganhava muito pouco, o que mal dava para suprir o básico, ainda mais com tantos filhos. Desde os 6 anos de idade ia junto com meus irmãos para a roça de tomate e pimentão para ajudá-los na colheita. Apesar de tanta dificuldade, era um ambiente muito gostoso, em meio à natureza e diversos animais”, contou.

LEMBRANÇAS
Uma das lembranças mais presentes na memória de Silva são os dias frios que passou em sua infância, pois, como o dinheiro era escasso, não havia condições de comprar roupas adequadas para todos. “Era complicado com muitos irmãos. Nossas roupas eram todas de doações, e o frio naquele tempo castigava. Acordar cedo para ir à roça era uma tarefa difícil”, recorda-se.

Ainda criança, uma das diversões preferidas era se juntar a outros trabalhadores em um galpão comunitário para assistir tevê. “Na fazenda moravam umas 40 famílias. Eram casas geminadas e no fim do dia todos se reuniam no galpão para assistir os mais variados programas. Além de brincar pelo pasto, essa era uma das minhas diversões prediletas.”

Quando passou para a quarta série, Silva começou a estudar em Aracanguá, e foi aí que novos desafios começaram a fazer parte de sua vida. “Nós íamos de ônibus para a escola. Como ele passava em várias fazendas para deixar os alunos, demorava muito, e a fome nos castigava. Para tentar enganar o estômago, pedíamos frutas nas casas vizinhas, pois só chegaríamos em casa próximo ao anoitecer”, conta.



PLANTIO
No início dos anos 1980, quando o dono da fazenda onde Silva morava se tornou diretor de uma usina sucroalcooleira, todas as plantações do local deram espaço a canaviais. A maioria dos funcionários, acostumados com o cultivo de outras culturas, teve que se adequar, inclusive ele.

Como morava de favor na fazenda, e era preciso ajudar nas despesas domésticas, Silva empunhou facão e foi trabalhar no corte da cana. “O começo foi muito difícil, pois era uma atividade extremamente exaustiva. Constantemente via colegas desmaiarem por conta do cansaço e do sol quente”, relatou.

Junto com a nova atividade vieram diversos convites para mudar a trajetória de seu caminho, mas para o lado negativo. “Naquele tempo rolava muita droga entre os cortadores. Talvez fosse uma forma de aguentar aquela dura rotina. Não foram raras as vezes que colegas me ofereceram para experimentar maconha, por exemplo. Contudo, apesar de toda a dificuldade, meus pais sempre me ensinaram a seguir pelo caminho certo”, afirma.

Outra coisa que chamou a atenção de Silva durante os anos no corte da cana, foi a quantidade de brigas entre os cortadores, desavenças que, segundo ele, chegavam a assustar quem presenciava as cenas. “As brigas eram constantes. Os cortadores chegavam até a se agredir com facões, era algo surreal”, lembra-se.

PROVAÇÕES
Nessa época, já com 16 anos, Silva estudava em Araçatuba e, mesmo após o dia todo trabalhando sob o sol escaldante, encontrava forças para estudar no período noturno. “Foi uma época de provações. Eu saía do canavial, chegava em casa e tinha que escolher: tomar banho ou comer alguma coisa, pois o ônibus não esperava.”

Silva afirma que por diversas vezes chegou a trabalhar com fome, pois a comida que levava na marmita estragava. “Minha marmita não era térmica, e na maioria das vezes comia tudo frio mesmo. Porém, a pior coisa era chegar na hora do almoço e perceber que tudo havia azedado. Aí era terminar dia com fome mesmo.”




CURSO
Terminando o ensino médio, em 1992, e com a ideia fixa de começar um curso superior, mesmo sem saber como custear os estudos, Osmar Previtale Silva prestou vestibular para o curso de letras. “O dinheiro era tão curto que eu não tinha como pagar a inscrição do vestibular, tive que pegar emprestado. Fui aprovado, e comecei a fazer o curso, mesmo sem dinheiro para pagar a mensalidade”, recorda-se.
Nessa época, já morando em Araçatuba, por ter sido obrigado a deixar a casa que morava de favor na fazenda, um dos diretores da usina, vendo a dificuldade de Silva para concluir os estudos, interveio e conseguiu uma bolsa quase integral na faculdade para ele. “Foi um alívio, com o desconto eu pagava quase nada.”

DISCRIMINAÇÃO
Durante o curso, Silva afirma que não foram poucas as vezes que sofreu discriminação por ser pobre e não ter tido as mesmas oportunidades que seus colegas de turma. “Mesmo na faculdade, eu ainda usava roupas doadas, pois ainda não tinha dinheiro para comprar. Minha mochila era uma pasta com alças que peguei no almoxarifado da usina. Os olhares tortos eram constantes”, lamenta.
Em 1995, o tão esperado dia da vitória chegou. A mão que estava acostumada a empunhar um facão, passaria a segurar um giz nas salas de aulas. “Foi o dia mais emocionante da minha vida. Foi como se eu nascesse de novo”, afirmou, emocionado.

SONHO
Hoje, 21 anos após a formatura, Silva é professor exclusivo de uma escola de cursos preparatórios em Araçatuba e dá aulas em um colégio particular em Penápolis. Ele diz que não se arrepender de nada que fez para conseguir realizar seu sonho.

Silva destaca como principal conquista ter conseguido depauperar a ignorância e conseguir ter estabilidade e conforto na vida pessoal. “Graças a Deus, hoje eu tenho uma vida confortável e já realizei uma série de outros sonhos”, concluiu.


Reportagem: Victor Ferreira
Fotos: Paulo Gonçalves
Edição: José Marcos Taveira

Folha da Região

"Vitória pela Educação" é uma série desenvolvida pela Folha da Região, jornal de Araçatuba que circula em 40 cidades do Noroeste Paulista.

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