Doméstica vira especialista nas palavras




No corpo, um vestido de retalhos; nos pés, sapatos de pano que percorriam as estradas de terra batida de uma fazenda em Macatuba, no interior de São Paulo. Pelo enredo, essa poderia ser mais uma história do escritor Monteiro Lobato, que retratou em diversas obras o dia a dia no campo. Contudo, ela é real e conta a vida de luta e superação de Maria Apparecida de Godoy Baracat, ou simplesmente professora Cidinha Baracat. Em comum com o famoso escritor, a paixão pela língua portuguesa. Cidinha é referência no assunto em Araçatuba, onde faz parte da Academia Araçatubense de Letras.

Nascida em 8 de fevereiro de 1937, filha de pai boia-fria analfabeto e de mãe costureira com pouco estudo, Cidinha cresceu no ambiente rural, sem conforto e com muitas privações. Na infância, nunca comprou roupa ou qualquer tipo de brinquedo. Suas vestimentas eram todas feitas com sobras das costuras que sua mãe fazia. “Era comum eu ter vestidos com uma manga de cada cor e tecidos diferentes. Os sapatos que eu usava para ir à escola, inclusive, eram feitos de pano. Até os nossos brinquedos eram confeccionados por nós mesmos”, disse.

Ainda criança, com 5 anos de idade, foi alfabetizada pela melhor professora que poderia ter: Deolinda de Andrade, sua mãe, que reunia em casa outras mulheres que não sabiam ler para ensinar o pouco que sabia.

Como a família não tinha dinheiro, comprar livros era algo impossível. Porém, a vontade de ler era maior. O jeito encontrado por Cidinha era ler tudo que aparecia em sua frente, principalmente latas de massa de tomate e os jornais que geralmente vinham embrulhando alguma compra.

Aos 7 anos, Cidinha foi matriculada na escola, onde teve seu primeiro contato com um livro e, de certa forma, sua primeira experiência como professora.



BAURU
Cidinha estava terminando o primário quando uma professora chamou sua mãe e disse que seria uma pena ela não poder continuar os estudos, pois Macatuba não possuía, na época, o ginasial. Deolinda, então, se lembrou de uma irmã que morava em um hotel em Bauru. Ela escreveu uma carta explicando a situação e a irmã achou uma família que concordou em dar abrigo em troca de serviços domésticos. “Com 14 anos, eu me mudei para essa casa. Eu trabalhava com os serviços domésticos e durante a noite frequentava a escola. Era cansativo, mas o prazer de estudar superava tudo”, relembrou.

Seis meses após ir para Bauru, a família que havia lhe acolhido precisou mudar de cidade. E mais uma vez a incerteza cruzou o caminho de Cidinha. Foi aí que uma irmã dela, já casada e com dois filhos pequenos, a chamou para morar em Sorocaba e ajudar a cuidar dos sobrinhos.



MARMITAS
A casa em que morava em Sorocaba não tinha luz elétrica e, nas diversas noites de estudo, tinha como testemunha de sua persistência uma lamparina. Para conseguir dinheiro, Cidinha conta que trabalhou, além de babá e empregada doméstica, como entregadora de marmita nas fábricas de tecidos da cidade.

Após terminar o ginásio, a angústia da incerteza sobre a continuação dos estudos voltava a pairar sobre a futura professora, pois em Sorocaba não havia o curso normal, o equivalente ao magistério, que era o sonho de Cidinha. “Eu fiquei muito triste porque mais uma vez não sabia o que fazer. Foi então que me lembrei de uma prima que morava em Araçatuba e dava aulas de inglês no Instituto Educacional Manoel Bento da Cruz, onde também havia o curso normal.”

Depois de escrever uma carta expondo a sua situação, a prima a convidou para vir morar em Araçatuba e concluir os estudos. “Eu cheguei aqui em 1955 e me formei em 1957, graças a Ruth Andrade Figueiredo, minha prima, que considero a terceira parte do tripé que me sustentou”, destacou.



PRÊMIO
Cidinha Baracat afirma que na sua época de magistério havia a chamada cadeira-prêmio, que dava direito ao aluno que se formasse com nota superior a 90 lecionar como professor efetivo em alguma escola. “Eu ganhei essa cadeira e acabei escolhendo Mirandópolis para dar aulas, onde lecionei no curso primário de 1958 a 1960, morando em uma pensão”, afirma.

Em 1960, já casada, Cidinha retornou a Araçatuba e foi dar aulas na Escola Estadual Luiz Gama, ainda no curso primário. No mesmo ano, fez um curso de português que credenciava professores para dar aulas no ginásio em cidade onde não havia faculdade da disciplina.

No ano seguinte, já grávida do primeiro filho, e sob influência do marido, que já cursava o quarto ano do curso de direito em Bauru, também ingressou os estudos nessa área, formando-se em 1965. “Eu comecei a fazer direito grávida do meu primeiro filho e sai da faculdade com mais dois. Três filhos ao final do curso”, brincou.

LETRAS
Em 1966, foi instalada em Araçatuba a Faculdade de Letras, o grande sonho de Cidinha, que terminou a licenciatura curta em 1968 e em 1969 a plena, em São Paulo. Em 1982, também ingressou no curso de pedagogia. Em 1980, o grande sonho, segundo ela, se realizou. Cidinha fundou uma escola que se dedicasse exclusivamente ao ensino da língua portuguesa. “Eu comecei com uma pequena lousa e 12 cadeiras usadas”, destaca. “Assim comecei o Centro de Comunicação e Criatividade, atualmente Centro de Comunicação Cidinha Baracat”, contou.

Hoje, prestes a completar 80 anos de idade, Cidinha se diz completamente realizada e destaca a importância do estudo como forma de mudar uma realidade. “Eu conquistei tudo que poderia conquistar. Se tenho uma vida confortável, foi graças aos estudos, que elenco como primordial na vida de qualquer pessoa. Contudo, sem ter a ajuda de minha mãe, irmã e prima, vigas mestras de minha vida, acho que nada seria possível”, concluiu.


Reportagem: Victor Ferreira
Fotos: Alexandre Souza
Edição: José Marcos Taveira

Folha da Região

"Vitória pela Educação" é uma série desenvolvida pela Folha da Região, jornal de Araçatuba que circula em 40 cidades do Noroeste Paulista.

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