Estudo leva engraxate a bater o martelo




Bahia de Jorge Amado, Caetano e Ruy Barbosa. Bahia, que foi celeiro de bambas da cultura brasileira, também foi berço de Nilton Santos de Oliveira, que poderia ser apenas mais um nordestino, negro e pobre nascido no interior do Brasil, mas que, por causa de sua persistência e, acima de tudo, dos estudos, hoje é quem bate o martelo da Justiça e faz a lei ser cumprida.

Natural de Prado, na costa baiana, e morando em Araçatuba desde 1997, dr. Nilton é hoje, com 58 anos de idade, juiz da 1ª Vara de Família no município. Contudo, até poder se cobrir com a toga, um dos símbolos dos magistrados, passou por vários desafios e situações que serviram de combustível para trilhar a sua história em busca de um sonho.

Oliveira é o terceiro personagem da série “A vitória pela educação”, que a Folha da Região está publicando aos domingos, contando histórias de pessoas comuns que conseguiram mudar de vida após os estudos.

Filho de uma lavradora analfabeta e de um pai com pouca leitura, o estudo esteve, desde cedo, permeando a vida do magistrado. Aos 8 anos de idade, viu seu pai vender tudo que tinha e se mudar com a família para Vitória da Conquista, onde os filhos teriam mais condições para estudar. “Embora quase analfabeto, meu pai sempre se preocupou com a nossa educação. Mesmo com todas as dificuldades financeiras, nos manter na escola foi sempre uma das prioridades”, disse Oliveira.

Para ajudar nas despesas da casa, ele começou a trabalhar ainda na adolescência. Como não tinha experiência em nenhuma área, foi trabalhar como engraxate e vendendo gibis e revistas usadas na porta do cinema. “Foi o jeito que encontrei de ganhar dinheiro, embora pouco, mas já dava uma ajuda. Eu trocava as revistas e os gibis e saía vendendo no centro da cidade, principalmente no final das sessões do cinema”, relembra.

LIMPEZA
Tendo trabalhado também como office boy e na limpeza de uma loja de veículos usados, foi só em 1975, aos 18 anos, após ter pedido emprego em diversos locais, que conseguiu trabalho como calculista em um supermercado. “Eu achava que ali minha vida já estava mudando, pois o emprego já era melhor que o de engraxate, mas mal sabia eu que a luta estava começando.”

Pouco tempo depois de começar a trabalhar no supermercado, Oliveira abriu mão de tudo e foi para o seminário. Ele queria ser padre. “Fiquei um tempo no seminário, mas vi que não teria vocação para seguir o sacerdócio. Tenho vários amigos padres e até bispos que estudaram comigo nessa época”, lembrou.

Após sair do seminário, ele decidiu ir embora para Salvador e começar a fazer cursinho e prestar vestibular para engenharia química. “Nesse tempo de cursinho, comecei a entender o que era dificuldade. Eu morava em uma pensão custeada pelo governo e o pouco dinheiro que tinha não dava para comer. Não foram raras as vezes que passei o dia apenas com meio pacote de biscoito no estômago, pois a outra metade dividia com um amigo que passava as mesmas dificuldades que eu”, afirmou.



SÃO PAULO
Mesmo virando noites estudando, Oliveira percebeu que não conseguiria êxito como engenheiro químico e, novamente abandonou tudo, mas dessa vez foi tentar a vida em São Paulo, onde uma irmã, que já era casada, morava. “Eu estudava muito. Nesse tempo, eu praticamente não sabia o que era dormir, mas, mesmo estudando excessivamente, eu não tinha base em química e física, por isso resolvi mudar.

Desembarcando na capital paulista em 1979, a prioridade de Oliveira era arrumar um emprego e posteriormente começar a fazer faculdade. Em pouco tempo começou a trabalhar como bancário e em 1980 prestou vestibular em duas faculdades particulares: um para direito e outro, economia.

DIREITO
Com o habito de estudar já adquirido, o resultado dos vestibulares não poderia ser outro. Passou nas duas faculdades, contudo, optou pelo curso de direito, mesmo sabendo das dificuldades que viriam.

“Eu trabalhava e precisava sair da casa da minha irmã, onde morava de favor. Naquele tempo, a faculdade era ainda mais cara do que é hoje, e não tínhamos programas de incentivo como atualmente. Se eu ganhava oito, seis eram para pagar a curso. Não sobrava quase nada”, exemplificou.

PULGAS
Mesmo com o pouco dinheiro que sobrava no final do mês, Oliveira foi morar em uma pensão, onde, para dormir, precisava passar veneno embaixo do colchão para espantar as pulgas.

“Na pensão não existiam portas, as divisões eram feitas com cortinas. Porém, o pior problema eram as pulgas. Teve vez de estar indo trabalhar de metrô e ver algumas pulando na minha camisa”, relembrou, aos risos.



CONCURSOS
Mesmo trabalhando o dia todo e fazendo faculdade à noite, Nilton Santos de Oliveira encontrou tempo para estudar e passou no concurso para escrevente do Fórum, o primeiro de vários que prestaria e também passaria. “Eu estudava nas madrugas, pois já tinha esse hábito desde a época da Bahia. Eu estudava de acordo com os editais. Meu foco eram as matérias que constavam nele.”

EXONERAÇÃO
Oliveira começou a trabalhar no Fórum, em São Paulo, mas após algum tempo pediu exoneração e voltou para a Bahia, pois queria se tornar juiz por lá. Entretanto, não foi aberto nenhum concurso para a função na época e ele acabou passando para procurador do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

“Eu tinha como objetivo me tornar juiz no Estado onde nasci, mas acabou não dando certo. Como estava por lá e já vinha estudando, prestei e passei no do Incra também”, disse.

RETORNO
Oliveira resolveu voltar para São Paulo com o mesmo intuito que o levou de volta a Bahia: ser juiz. De volta à terra da garoa, continuou prestando diversos concursos e passando na grande maioria deles.

“Eu estudava em casa. Fiz curso preparatório durante três meses, mas vi que rendia mais sozinho. Dentre os concursos que passei estão o de procurador do município de São Paulo, procurador estadual, fiscal de renda e assessor da Assembleia Legislativa”, destaca.

Em 1991, o tão sonhado dia chegou. Nilton Santos de Oliveira passou no concurso para juiz substituto e começou a trabalhar na cidade de Caraguatatuba, no litoral do Estado. “Foi uma realização pessoal e familiar. Tudo que eu sempre quis, agora estava ali, tinha se tornado realidade”, relembra, emocionado.

Após passar pelo Interior de São Paulo, por cidades como Lucélia, Panorama e Tupi Paulista, Oliveira voltou para a Capital, onde trabalharia no 1º Tribunal do Júri, já como juiz auxiliar. “Éramos 12 juízes no total. Julgávamos cerca de 70% dos homicídios da Capital, era muito trabalho”, afirma.



RACISMO
Oliveira destaca que foi trabalhando no tribunal que um fato inusitado aconteceu. “Eu sentenciava um homem por homicídio e, em um determinado momento, ao declarar as razões do crime que havia cometido, ele disse não gostar nem de japonês nem de pessoas ‘de cor’. O preconceito nunca me abalou, sempre superei tudo. Ser negro, ser pobre e ser nordestino sempre foram motivos de orgulho. Só sei que o sujeito, posteriormente respondeu pelos dois crimes (homicídio e injúria racial)”, lembra-se o juiz.

SENSIBILIDADE
Em busca de uma vida mais tranquila e longe da agitação da Capital, Oliveira resolveu vir para Araçatuba. Mas o motivo mais forte, segundo ele, era o fato de estar ficando indiferente ao sofrimento alheio. “Eu via tanta desgraça nos casos que julgava, que comecei a perder a sensibilidade pelo próximo. E vi que essa era uma realidade dos demais juízes. Não queria aquilo para a minha vida”, relatou.

Aos 58 anos, Oliveira tem dois filhos: um de 10 e outro de 14 anos. “Com toda essa trajetória, não tive tempo para fazer filhos antes”, brincou.

Há 19 anos em Araçatuba, Oliveira já foi diretor do Fórum de Araçatuba e hoje é juiz da 1ª Vara de Família na cidade. Ele diz não se arrepender de absolutamente nada que passou para chegar até aqui e, apesar de ter recebido o apoio de diversas pessoas, afirma que sem fé nada é possível.

“Meu maior orgulho não é ter me tornado juiz. Eu me orgulho por ter conseguido quebrar um ciclo da ignorância na minha família. Eu fui o primeiro a conseguir diploma de nível superior. Hoje já vejo meus sobrinhos colhendo esses frutos. Tenho uma sobrinha juíza, outro advogado e mais uma que vem seguindo os passos da carreira jurídica. Agradeço a meu pai, porque, mesmo sem estudo, entendia a importância da educação. A fé me ajudou e sustentou nos dias difíceis. As bênçãos não vêm apenas em forma de graça; às vezes, elas vêm em forma de desgraça para mudarmos o jeito que estamos caminhando”, concluiu.



Reportagem: Victor Ferreira
Fotos: Alexandre Souza
Edição: José Marcos Taveira

Folha da Região

"Vitória pela Educação" é uma série desenvolvida pela Folha da Região, jornal de Araçatuba que circula em 40 cidades do Noroeste Paulista.

Um comentário:

  1. Para esse juiz eu bato palmas ������! Fui estagiaria dele em 1999...aprendi muita coisa , tenho um carinho muito grande ! Sem palavras Dr Niltom meu mestre , meu amigo ! Tenho orgulho dele!Saudades !!!

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